quarta-feira, 1 de abril de 2015

O futuro atrás das grades

Olhou para a rua deserta e silenciosa e quis saber o que poderia haver nos breus que se espalham nas calçadas, nos muros, nos cantos das casas, sob carros, por detrás dos arbustos e nas copas das árvores. Quais mistérios se escondem nos lugares mal vistos do bairro, da cidade, do país? A escuridão da rua tem aparência de perigo à espreita, planejando o próximo ataque.
– Finalmente as coisas podem começar a melhorar – comemorou o pai, horas antes, enquanto assistia ao telejornal da noite.
– Se Deus quiser. Essa violência toda não dá mais – concluiu a mãe, sentada em sua poltrona acolchoada em couro ecológico, reclinável e com encosto para os pés.
Na TV, o repórter anunciava a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça, da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Seus pais acompanhavam atentos a notícia. A expressão no olhar era de satisfação, com certa dose de entusiasmo. Sentiam-se aliviados.
– Bandido é tudo igual, mesmo – disse o pai, levantando-se para se servir novamente do jantar. Antes de deixar a sala, completou: – Tem que ir tudo pra cadeia.
A mãe consentiu com um gesto, mas depois inclinou a cabeça para o lado, franziu o cenho e ergueu os ombros, ouvindo o que dizia alguém para o repórter: “Se a PEC virar lei”, declarou o entrevistado, “adolescentes e adultos serão tratados igualmente, recebendo a mesma punição. Isso significa que jovens serão enviados para um sistema fracassado, do qual muitos outros já fazem parte e estão cada vez mais longe da reabilitação”.
– Isso é uma pena – lamenta a mulher. – Mas é inevitável. O mundo está terrível.
O garoto ainda não tinha completado 16 anos, mas faltavam poucos meses para isso. Era absurdo, mesmo assim temeu a punição dos criminosos. Mas eu não preciso ter medo, disse mentalmente, recriminando-se por tão estúpido pensamento. Afinal, a lei não seria para os jovens de bem. Os delinquentes seriam punidos. Seus pais estavam certos em comemorar. Com a redução da maioridade penal, sua família estaria mais segura e, quem sabe, todos começariam a dormir mais sossegados. Uma preocupação a menos!
– Filho, melhor você fechar o portão – avisou a mãe, notando que passava das 21 horas.
Dentro de casa, observando a rua através das grades, ele sentiu os pelos dos braços eriçarem. Imaginou-se em meio aos riscos da noite e estremeceu ao pensar no revólver contra sua costela, a faca colada à sua garganta ou penetrando a pele. Imaginou então o pivete segurando-o pela gola da camisa, ferindo-o com chutes e socos na face. Sentiu o gosto do sangue que escorreu até a boca e a punhalada nas costas. Talvez fosse esfaqueado, agredido até a morte. Talvez se tornasse mais uma vítima da violência que atormentava os que não a mereciam.
Quanto perigo, meu Deus!
Apressadamente passou a pesada corrente pela grade do portão e fechou o cadeado. Certificou-se que fechadura estava perfeitamente travada. Finalizou com os dois ferrolhos que eram presos por outros dois grandes cadeados. Feito a vistoria e garantindo que tudo estava mesmo realmente trancado, o garoto olhou para o lado de fora e ficou aliviado por estar longe do perigo.
Finalmente acreditou que estava seguro. Só não queria pensar, ainda que fosse insistente na sua cabeça, até quando as grades e os portões seriam suficientes. Até quando o mundo lá fora não seria também o mundo de dentro. Até quando as correntes e cadeados protegeriam sua família do perigo real, que não se resolve com celas e covis. Mais do que isso, quando o mundo de fora se tornaria também um problema de todos?
Deus me livre de viver do outro lado. Deus me livre de ter a vida roubada aos dezesseis. Ah, Deus me livre! Mas quem vai livrar os que estão do lado de lá?

Esquivando-se do problema, deu de ombros e entrou para dentro de casa. Talvez fosse assim mesmo o funcionamento da vida. Essa era a ordem para o progresso brasileiro – para que alguns possam ganhar um pouco de liberdade, outros precisam perdê-la completamente. Então a vida prossegue, com muitos paliativos e pouquíssimas soluções. Uma multidão de encarcerados, centenas de amedrontados e uma porção rasa de despreocupados. Sem que nada aconteça, igual permanece o futuro da maioria de nós: atrás das grades.