Olhou
para a rua deserta e silenciosa e quis saber o que poderia haver nos breus que
se espalham nas calçadas, nos muros, nos cantos das casas, sob carros, por
detrás dos arbustos e nas copas das árvores. Quais mistérios se escondem nos
lugares mal vistos do bairro, da cidade, do país? A escuridão da rua tem aparência
de perigo à espreita, planejando o próximo ataque.
–
Finalmente as coisas podem começar a melhorar – comemorou o pai, horas antes, enquanto
assistia ao telejornal da noite.
–
Se Deus quiser. Essa violência toda não dá mais – concluiu a mãe, sentada em
sua poltrona acolchoada em couro ecológico, reclinável e com encosto para os
pés.
Na
TV, o repórter anunciava a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça,
da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Seus pais acompanhavam
atentos a notícia. A expressão no olhar era de satisfação, com certa dose de
entusiasmo. Sentiam-se aliviados.
–
Bandido é tudo igual, mesmo – disse o pai, levantando-se para se servir
novamente do jantar. Antes de deixar a sala, completou: – Tem que ir tudo pra
cadeia.
A
mãe consentiu com um gesto, mas depois inclinou a cabeça para o lado, franziu o
cenho e ergueu os ombros, ouvindo o que dizia alguém para o repórter: “Se a PEC virar lei”, declarou o
entrevistado, “adolescentes e adultos
serão tratados igualmente, recebendo a mesma punição. Isso significa que jovens
serão enviados para um sistema fracassado, do qual muitos outros já fazem parte
e estão cada vez mais longe da reabilitação”.
–
Isso é uma pena – lamenta a mulher. – Mas é inevitável. O mundo está terrível.
O
garoto ainda não tinha completado 16 anos, mas faltavam poucos meses para isso.
Era absurdo, mesmo assim temeu a punição dos criminosos. Mas eu não preciso ter medo,
disse mentalmente, recriminando-se por tão estúpido pensamento. Afinal, a lei não
seria para os jovens de bem. Os delinquentes seriam punidos. Seus pais estavam
certos em comemorar. Com a redução da maioridade penal, sua família estaria
mais segura e, quem sabe, todos começariam a dormir mais sossegados. Uma preocupação a menos!
–
Filho, melhor você fechar o portão – avisou a mãe, notando que passava das 21
horas.
Dentro
de casa, observando a rua através das grades, ele sentiu os pelos dos braços
eriçarem. Imaginou-se em meio aos riscos da noite e estremeceu ao pensar no
revólver contra sua costela, a faca colada à sua garganta ou penetrando a pele.
Imaginou então o pivete segurando-o pela gola da camisa, ferindo-o com chutes e
socos na face. Sentiu o gosto do sangue que escorreu até a boca e a punhalada
nas costas. Talvez fosse esfaqueado, agredido até a morte. Talvez se tornasse
mais uma vítima da violência que atormentava os que não a mereciam.
Quanto
perigo, meu Deus!
Apressadamente
passou a pesada corrente pela grade do portão e fechou o cadeado. Certificou-se
que fechadura estava perfeitamente travada. Finalizou com os dois ferrolhos que
eram presos por outros dois grandes cadeados. Feito a vistoria e garantindo que
tudo estava mesmo realmente trancado, o garoto olhou para o lado de fora e
ficou aliviado por estar longe do perigo.
Finalmente
acreditou que estava seguro. Só não queria pensar, ainda que fosse insistente
na sua cabeça, até quando as grades e os portões seriam suficientes. Até
quando o mundo lá fora não seria também o mundo de dentro. Até quando as
correntes e cadeados protegeriam sua família do perigo real, que não se resolve
com celas e covis. Mais do que isso, quando o mundo de fora se
tornaria também um problema de todos?
Deus me
livre de viver do outro lado. Deus me livre de ter a vida roubada aos
dezesseis. Ah, Deus me livre! Mas quem vai livrar os que estão do lado de lá?
Esquivando-se
do problema, deu de ombros e entrou para dentro de casa. Talvez fosse assim
mesmo o funcionamento da vida. Essa era a ordem para o progresso brasileiro – para
que alguns possam ganhar um pouco de liberdade, outros precisam perdê-la
completamente. Então a vida prossegue, com muitos paliativos e pouquíssimas
soluções. Uma multidão de encarcerados, centenas de amedrontados e uma porção rasa
de despreocupados. Sem que nada aconteça, igual permanece o futuro da maioria
de nós: atrás das grades.